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Confira abaixo a íntegra da matéria postada pela Marie Claire. Link: Tatiana Sampaio, a cientista que devolveu esperança para pacientes com lesão medular, vive a vida entre samba e pesquisa: ’Eu gosto de rua, de gente’


Todo dia ela fazia tudo sempre igual: acordava, se banhava, tomava café e partia para o Laboratório de Biologia da Matriz Extracelular, do Instituto de Ciências Biomédicas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) para estudar algo que “ninguém se importava". Sorria com um sorriso pontual, quando explicava que estudava a termodinâmica da associação de unidades de uma proteína. Seis da tarde, como era de se esperar, falava com alunos e testava novas formas de pesquisa. Todo dia ela fazia tudo sempre igual. Até este ciclo ser quebrado no começo de setembro, quando o nome de Tatiana Sampaio foi catapultado à mídia.


“Antes eu quase não via celular. Agora eu preciso estar atenta porque sempre tem pessoas me mandando mensagem. Seja para resolver problemas, seja para marcar entrevista, seja para responder dúvidas. Tá uma loucura", diz a professora e pesquisadora. O motivo para tamanha mudança de rotina tem nome: polilaminina. Segundo estudos clínicos, a proteína extraída da placenta tem capacidade de estimular neurônios que, em teoria, não iriam mais se desenvolver e até a criarem novos axônios (fios que transportam os impulsos elétricos pelo corpo). Na prática, isso representa uma esperança para que pacientes com lesão na medula espinhal (paraplegia e tetraplegia) possam recuperar seus movimentos.


O caso mais emblemático foi o do bancário Bruno Drummond de Freitas, 31, que, após um acidente de carro em 2018, foi diagnosticado com tetraplegia. “Quando percebi que não sentia nada do pescoço para baixo, eu fiquei muito triste, só queria dormir”, relembra. “Até um dia que acordei e vi que um dedão estava mexendo. Não entendi porque todo mundo estava comemorando, era só um dedão. Aí me explicaram sobre a polilaminina. Foi o que mudou minha vida", completa o bancário que hoje tem todos os movimentos do corpo. O caso de Freitas é o mais famoso, mas tanto a pesquisadora como o laboratório responsável pelo medicamento, Cristalia, ressaltam que cada paciente conta com uma evolução única, por isso o pós-operatório é tão importante. O investimento para que o medicamento chegue nas prateleiras das farmácias gira em torno de R$ 28 milhões.


Pelo fato da polilaminina ser uma proteína e não um organismo vivo, como no caso das células-tronco, o risco de rejeição ou complicações é menor. Outra vantagem é que, além dela poder ser fabricada, armazenada em freezer e usada rapidamente em emergências, ela não necessita de manipulações complexas ou de imunossupressores. "A ideia é que seja aplicada o mais rápido possível depois da fratura, na hora da operação", explica a doutora em biologia. Seis dos oito voluntários da pesquisa mostraram melhoras, como a volta do movimento de todos os membros ou de alguns (perna ou braço).


De acordo com as Diretrizes de Atenção à Pessoa com Lesão Medular do Ministério da Saúde, a incidência de Trauma Raquimedular (TRM), que pode resultar em paraplegia ou tetraplegia, está estimada em aproximadamente 8,4 mil casos por ano no Brasil. Os mais comuns são homens, vítimas de acidentes de carro, na faixa dos 30 anos.


Ainda que os resultados sejam bastante promissores, o laboratório Cristália, responsável pela patente e pelo desenvolvimento científico da medicação, aguarda autorização da Anvisa para iniciar a fase 1 dos estudos, que envolverá mais 5 pacientes, etapa necessária para que o tratamento esteja disponível nos hospitais brasileiros. Os estudos serão feitos no Hospital das Clínicas do Rio de Janeiro e no Santa Casa. “Vamos realizar o procedimento em casos de lesões muito recentes, de três a quatro dias após o trauma, para obter melhores resultados", diz a pesquisadora. O tempo dos estudos pode variar, mas normalmente esta etapa leva, no mínimo, três anos.


Do laboratório à fama

“Qualquer pessoa que trabalha com ciência tem o desejo de ver o seu trabalho resultar em alguma coisa na vida real. Mas, honestamente, não imaginava que ia ter essa publicidade toda", diz Tatiana enquanto tenta se organizar entre as dezenas de pedidos de entrevista e as surpresas dos amigos. “Eu sabia que ela era fera, mas não sabia que essa fera tinha tanto dente", brinca Claudio Cruz, dono do bar Vaca Atolada e celebridade dentre a boemia carioca.


Figura carimbada em bares progressistas do Rio de Janeiro, Tatiana elegeu o Vaca Atolada como sua segunda casa há pouco mais de oito anos. “Vou pelo menos uma vez por semana lá”, conta. “Uma vez? Que mentira! Ela está aqui pelo menos três vezes na semana", brinca Cruz. “Tenho pouco tempo livre, então sempre vou pro samba tomar cerveja. Minha natureza não é ficar em casa quietinha, lendo, não. Eu gosto de rua, de gente, de sair com meus amigos", diz.


De físico esguio, cabelos loiros e forte sotaque do Rio de Janeiro, Tatiana não aparenta os 59 anos. O segredo? “Eu amo viver. E gosto de ficar perto de gente que também ama viver", conta, alegando que só dorme seis horas por noite tamanha necessidade pela vida. Por isso ela não só aproveita os finais de semana, como principalmente os eventos durante a semana. O horário da farra? “Após às 22h só. É a hora que eu saio do laboratório. É que eu tenho muito pique", justifica.


“Eu ia falar que ela tem até um quartinho aqui nos fundos do bar, mas agora ela tá famosa", brinca Claudio, que sempre a coloca na “área VIP” do bar: perto dos músicos. “Achei engraçado quando me pararam na rua e pediram para tirar selfie comigo. Isso aconteceu duas vezes. Não entendi nada", relembra ela. O “não entendimento” tem um motivo: a pesquisadora não tem redes sociais. “Acho que Instagram é uma coisa que mobiliza muita pessoa, né? Você fica muito envolvido com fofoca e tem expectativas irreais sobre o mundo, sobre as pessoas. Prefiro a vida real. Viver sempre será minha primeira opção", diz.


Intelectual de laboratório

Ainda que refute o título de intelectual ou "nerd", Tatiana dedicou a vida aos estudos. Exceto pelos dois estágios de pós-doutorado, um em imunoquímica na Universidade de Illinois (EUA) e outro em inibidores de angiogênese na Universidade de Erlangen-Nuremberg (Alemanha), estudou da graduação até o doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde também dá aula e realiza suas pesquisas.


Atualmente está à frente de uma equipe de cerca de 15 pessoas, a maioria formada por estudantes de medicina. “Há dois anos, a equipe era majoritariamente feminina e pesquisadora, mas hoje são os homens da Medicina”, relembra. Apesar de não ter preferência entre trabalhar com homens ou mulheres, ela reconhece diferenças: “Os homens são muito mais obedientes. Se você é chefe e dá uma ordem, eles aceitam. Já as mulheres, não. Você precisa convencê-las”, afirma. Ainda assim, ela defende a presença feminina no laboratório: “Falei esses dias que precisa de mais mulheres lá.. É sempre bom dar uma renovada de gênero, de especialidades, de vivências. Isso enriquece demais a pesquisa”.


O Laboratório de Biologia da Matriz Extracelular do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) não foi apenas berço da descoberta da polilaminina, como também de uma filha. Mãe biológica do estudante de economia Ivo, de 25 anos, e da estudante de relações internacionais Anita, de 21 anos, Tatiana decidiu há seis anos levar Raquel dos Santos Silveira, de 28 anos, para a sua casa. “Foi um grande ato de coragem ela ter me acolhido dentro da casa dela. Por mais que a gente se conhecesse ali, no ambiente do laboratório, é sempre delicado colocar uma pessoa estranha dentro de casa. Ia ficar apenas alguns dias e já estou há quase sete anos”, diz Silveira, que, incentivada por Tatiana, está cursando mestrado.


Silveira, que é órfã de pai e mãe, foi separada da irmã quando ainda era jovem e vivia no Maranhão. Ao chegar no Rio de Janeiro, passou pela casa de alguns parentes até pousar no apartamento de Tatiana, no bairro de Laranjeiras. “A primeira vez que senti parte de uma família foi na casa dela. A primeira vez que eu me senti capaz foi quando ela me deu o meu primeiro estágio. Ela foi um dos melhores presentes que Deus me deu, não só por tudo que me fez, mas por me fazer aprender mais e mais a cada dia que passa", diz.


Sobre o ineditismo de sua pesquisa, ela explica que a laminina — proteína natural da matriz extracelular (MEC) — esteve em alta há cerca de 30 anos, quando se descobriu sua relação com processos de regeneração. A polilaminina, por sua vez, é a versão polimerizada dessa proteína, obtida em laboratório. “Já se sabia que ela tinha a ver com regeneração; a descoberta foi entender como funciona.” Atualmente, dois grupos nos Estados Unidos investigam o tema em outros contextos, como regeneração da mama e obesidade, enquanto a Universidade de São Paulo (USP) conduz estudos voltados ao tratamento de diabetes. “Todos me parabenizaram. A gente troca bastante informação.”


Ainda que faltem fases de aprovação da Anvisa até a polilaminina chegar ao mercado, a classe científica tem celebrado a descoberta. A bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA) Suzana Herculano-Houzel dedicou uma coluna da Folha de S. Paulo sobre Tatiana que “não só teima que deve haver um jeito de contornar esse impedimento local dentro da medula como faz isso com polilaminina, uma substância que todo laboratório que cultiva neurônios tem”. O mais surpreendente, segundo Houzel: a determinação de Tatiana. “Quando aparece uma cientista obstinada, a história muda. E a gente fica feliz", escreveu.


Ovelha científica da família

Irmã mais velha de três mulheres, foi a única que se enveredou para fora do ramo de humanas. “Desde criança quis ser cientista. Como gostava de átomos e partículas, pensei que trabalharia com física, mas acabei escolhendo a biologia para me distanciar do meu pai, que sabia tudo de tudo sempre", relembra. No entanto, a rebeldia de Tatiana em relação aos pais começa e termina aí. “Sempre fui companheira do meu pai. Na infância adorava falar com ele sobre qualquer coisa e, na idade adulta, eu relia os livros de filosofia que ele escreveu", diz. "Somos muito unidas, eu, minhas irmãs e minha mãe. Até hoje moramos perto”, conta.


O maior legado que Luís Sérgio Coelho de Sampaio deixou, segundo a pesquisadora, não foram apenas os livros escritos ou as boas memórias: foi a forma holística e interdisciplinar de pensar não só a ciência, como a vida. Foi nesse cenário, então, que podemos dizer que surgiu a polilaminina. “Demorou tanto tempo [para conectar a polilaminina com as lesões], porque fui mudando de área de estudo. Eu não estava estudando neurobiologia, nem lesão medular, nem o sistema nervoso", reflete. “Meu pai sempre falava que a filosofia é o estudo da realidade, de como as pessoas e a sociedade se comportam. Com esse tipo de conhecimento, você tem sempre uma visão mais profunda do que está acontecendo à sua volta e é mais fácil de agir", conclui. E agiu.



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Polilaminina Dra. Tatiana Sampaio UFRJ